Contos

Nada combina com absinto

A garoa estava fina, mas o calor permanecia. A calçada era larga, de cimento, e a rua estava deserta. António acordou em meio ao vômito. Sujo, jogado ao chão, tentava se levantar atordoado, com uma forte dor de cabeça e várias perguntas no ar: onde estou? Que dia é hoje? Que horas são? Como vim parar aqui? O que aconteceu ontem à noite?

Ele vestia a mesma roupa que trabalhou no dia anterior: camisa social azul marinho aberta, com uma malha por baixo e calça jeans. Olhou em volta e não reconheceu aonde estava. Um muro fechado de mais de dois metros atrás de si, uma estrada de barro, sem casas em volta. Uma coisa era certa: estava longe, muito longe de casa.

Em sua volta uma garrafa vazia de sangria, um revólver e o seu bloco de anotações aberto em uma página com um número de telefone escrito em uma bela grafia que ainda continha a frase “Nada combina com absinto”. Ao tocar no bloco de anotações, teve algumas lembranças da noite anterior.

– Não vou poder ir. Estou com uma baita pauta. Investigo um empresário golpista, montou vários negócios em Lisboa para roubar turistas. Restaurante, hotel, hostel, tudo que ele monta é para truques – comentou António com o amigo, entre um gole e outro de cerveja.

– Tu tá falando daquele novo restaurante que abriu no Cais? Tu sabes que o dono tem um boteco duas quadras acima? O tal World’s Bar…

– Vamos lá? Só dar uma passada, olhar o movimento. Dificilmente ele estará aqui, mas posso conseguir algumas informações novas

– Tu podes trabalhar bebendo? Já tomasse várias, hoje…

– Jornalista é jornalista o tempo todo. Vamos lá

António e o amigo foram até o bar do suspeito. Diferente das outras bodegas do Bairro Alto, o World’s Bar estava em uma casa inteiramente reformada. Tinha seguranças na porta e cobrada entrada. O amigo jogou meio copo de cerveja fora para poder entrar.

António pegou o telefone para ver as fotos. Não lembrava da noite anterior, mas se estava a investigar um caso, era certo que a câmera foi usada. Porém, o aparelho estava desligado, sem bateria. Sentou-se na rua e começou a procurar por informações novas no bloco de anotações. Afinal, estava em um local misterioso e sem contato com o mundo.

Começou a tentar lembrar do telefone, de quem poderia ter escrito o número. Outras lembranças vieram.

Nunca havia saído com uma mulher tão bonita. Morena de cabelos cacheados e olhos verdes, Júlia era encantadora e misteriosa. Trocaram olhares na pista dos World’s Bar, foram para um canto conversar e, entre um drink e outro, os lábios já estavam entrelaçados. Enquanto isso, o amigo tirava a paciência do garçom com a descrição de glórias e feitos pessoais que jamais aconteceram.

– O bar de vocês é ótimo. O dono está por aí? O meu amigo quer conhece-lo

– Ele não está aqui. Mas por que ele quer conhecer?

– Não é nada do que tu estás pensando, não. Meu amigo gosta de mulher. Ele quer é conhecer os negócios do dono desse bar.

A conversa entre o amigo e o garçom foi interrompida por António, que pediu mais duas doses de absinto. Era a quarta vez que ele fazia isso.

– Cuida! Tu já bebeste um monte de sangria. E nada combina com absinto – disse o amigo.

Ninguém passava na rua. António estava mal. O estômago continua a fazer barulhos que jamais tinha ouvido, a dor de cabeça era insuportável. Decidiu então, procurar o portão da única casa que tinha na rua. Antes, juntou o revólver, a garrafa de sangria e o bloco de anotações.

Tocou o interfone e com a voz rouca pediu ajuda. Disse que estava perdido e precisava de uma localização. A voz masculina no outro lado mandou esperar.

A porta para pedestres abriu. Um homem alto, forte, careca, de roupas pretas o reconheceu, mas a memória de António continuava ruim.

– Filho da puta! Tu vai morrer – gritou o homem, antes de dar um soco na boca de António. Com o jornalista no chão, o careca sacou uma pistola e ordenou – Tu tens cinco minutos para sair da minha vista ou vai levar bala. Eu já estou arrependido de não ter te matado ontem, vou te dar mais uma chance.

Com a boca suja de sangue, António se levantou. Mas antes de virar as costas e ir embora, agiu sem pensar. Sacou o revólver que tinha e deu um tiro no homem. O jornalista nunca tinha atirado na vida, se quer usado uma arma. Mas o primeiro disparo da vida foi com sorte e ele derrubou o cidadão com cara de segurança.

António começou a chorar. Há dois dias, era um profissional da paz, um defensor do diálogo, um cidadão pacato que se tornou um homicida. O portão estava aberto e ele conseguiu ver e reconhecer a casa aonde esteve na noite anterior.

– Festa particular? Isso é arriscado. Acho que devemos recusar – disse António ao amigo.

– Vai todo mundo que está nesse restaurante. Tu não disseste que ele rouba os clientes? Pois então, conversei com vários e todos saíram satisfeitos – respondeu o amigo.

– Deve ser tudo amigo dele. Nem sei porque estamos aqui. Já é tarde, os bares já fecharam, até esse restaurante de rico dele já fechou.

– Então convence a tua namoradinha. Ela é a mais empolgada, lembra?

—-

– Ô caralho, para de beber – disse o amigo.

– Foda-se! Tu me encheu o saco para vir, para festa, agora eu vou. E digo mais…CUIDAAAAAADO – gritou António.

Os dois estavam dentro de um carro em alta velocidade, deixando a cidade, quando viram um veículo sob fogo na rodovia, na direção do aeroporto. O amigo, que estava no volante por ser o menos embriagado, conseguiu desviar e evitar o acidente. Ambos estranharam como alguém pode dirigir com o carro pegando fogo, mas logo esqueceram do fato bizarro que presenciaram. António começou a ficar tonto e pediu para que o amigo fizesse uma pausa no meio da estrada.

– Nada combina com absinto – disse Júlia, que também estava embriagada.

António entrou na casa e começou a ter alguns flashes na noite passada. Sim, era uma festa. Uma festa de ricos, engravatados, regada a whisky e absinto. Lembrava de estar com Júlia, do amigo sem roupa no meio da festa. Lembrou de Júlia na porta da casa, com uma caneta e o seu bloco de anotações na mão:

– Eu vou ter que sair mesmo. Me liga qualquer coisa – afirmou ela antes de sair.

Atravessou a casa e chegou em uma grande sala onde um senhor de barba com um roupão dormia em uma poltrona. Quando o senhor acordou, o revólver de António já estava mirado para sua cabeça.

– Aonde eu estou. Quem é você? Como eu volto para casa? Cadê a Júlia? – gritou o jornalista.

– Calma, António. Não me reconheces? E os nossos brindes de ontem? Eu entendo. Estás de ressaca. Tomasse todas ontem, misturasse tudo. E nada combina com a absinto. Sabes por quê? Porque a gente começa a ter umas alucinações.

– Quem é você, filho da puta?

– Sou teu amigo, porra!

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