Contos

Abril de 2020

Abril de 2020. Estava no quarto, ouvindo o último álbum do Stone Temple Pilots, quando foi chamado a missão. Não queria novamente abrir os olhos, pois não era um dia para fazer nada. O chamado veio pelo telefone, que não quis atender. Depois, a porta bateu, uma, duas, várias vezes. Até ter a coragem de sair do edredom.

– Sua namorada mandou mensagem para mim. Disse que ligou para ti três vezes e tu não atendeu. Ficou preocupada

– Está no silencioso, por isso. Mas acho que nem vou na casa dela hoje. Com esse frio e chuva…

Uma aventura em abril de 2020

Olhou as mensagens e mudou de ideia. Ela tentava contato há duas horas. Queria fazer uma janta especial em plena quarentena. Eles já tinham combinado a janta, que preparariam juntos. Não havia como fugir. Teria um longo caminho pela frente: frio intenso, chuva forte, vento e a quarentena.

Avisou seus colegas de batalhão, que ajudaram a armá-lo- Capa de chuva, casaco, tênis impermeável bom de corrida. Mais do que o inverno e o tempo ruim no qual era acostumado, o jovem teria pela frente a batalha da quarentena para chegar ao destino são e salvo.

Com um forte vento a sua cara e muita chuva, desceu a rua e começou sua caminhada. Andava devagar, olhando para todos os lados. A capa até ajudava, mas não impedia de se molhar. Já estava anoitecendo e a neblina cobria a visão.

O início da batalha

Ao dobrar a esquina, encontrou seu primeiro adversário. Do alto das janelas dos apartamentos, duas varandas com vigias: uma spiner de fofoca, aparentando seus 85 anos e um jovem com um estranho objeto junto aos olhos…ah, sim. Um binóculo. O jovem não percebeu sua caminhada. Mas a sniper observava cada parte da rua. Escondeu-se atrás do lixo até que a mira da sniper mudasse de lado.

Quando a senhorinha se virou, saiu do lixo e continuo sua caminhada. Tentou acelerar os passos, mas logo foi descoberto. Escutou de longe a voz da senhora, que gritava:

– Fica em casa, CARALHO!

Acelerou o passo para que pudesse logo sair de vista, a senhora continuava a gritar, foi quando viu uma tasca perdida, aberta em plena quarentena. Decidiu entrar e ficar ali até não ser mais visto.

Apenas duas pessoas frequentavam o local. O dono da tasca, chamado Jorge, logo o reconheceu.

– Vai querer café ou cerveja?

– Vai um café, mesmo.

Quando preparava-se para sair, escutou a porta se abrindo. Um senhor de meia idade, com um violão em uma mão e um copo de cerveja na outra, veterano de guerra dos bares, mas que naquele momento estava para lá de Bagdá. O bêbado caminhou em direção ao jovem e perguntou

– Tem um cigarro?

O jovem entrou em pânico. Encontrar o bêbado mais chato do vilarejo significava perder algumas horas, pois ele não deixava ninguém ir embora. O jovem correu para o banheiro e trancou-se enquanto pensava em um plano para deixar a tasca.

Não eram os Guns N Roses

Porém, ele decidiu pela ousadia. Saiu do banheiro convicto e pronto para mais uma batalha. Chamou o bêbado e desafiou a tomar um shot. Whisky com absinto. O homem do violão topo o confronto. Ambos sentaram a uma mesa, frente a frente, com o dono preparando os shots. Se encararam e quando o homem colocou a mistura do demônio garganta abaixo, o jovem havia fugido, com o copo intacto.

Saiu tão rápido que esqueceu a capa de chuva. Optou por passos acelerados na rua, sem conseguir enxegar o horizonte. Logo depois, o frio aumentou junto com a força da chuva e foi quando avistou umas luzes a frente. Havia uma movimentação, carros parados. Algo estava a acontecer.

Os carros estavam devidamente identificados com a sigla GNR. Não era uma turnê do Guns and Roses e sim a Guarda Nacional Republicana. O jovem estranhou, pois jamais imaginaria que a GNR faria uma blitz da quarentena. Algo mais grave deveria estar acontecendo. Por um lado, pensou que os policiais não estavam a sua procura. Entretanto, lembrou que poderia ser abordado e questionado por que não estava em casa.

O que argumentar? Supermercado não era nesse horário num domingo. Farmácia não havia próxima. Estrangeiro, não poderia alegar questões familiares e o verdadeiro motivo jamais seria aceito. Não tinha como justificar o trajeto, tampouco poderia voltar para casa e abandonar o jantar. Era preciso arriscar.

Arriscado demais para abril de 2020

Voltou a tasca e chamou o bêbado mais chato da cidade. Disse que daria cigarros para ele, mas ele precisaria vir junto até outro bar, o que foi aceito de imediato. Voltando a blitz, foi parado por um dos policiais, que perguntou para onde estavam indo.

– Estou conduzindo este senhor para a sua casa, ele corre muito riscos na rua.

– Este senhor nem casa tem, meu jovem. E nem é idoso. O risco dele é ter uma cirrose e não contrair o coronavírus.

Quando o policial ofendeu o bêbado, este respondeu com um direto de direita no rosto da autoridade. Os outros três policiais reagiram e foram para cima do violonista do álcool. O jovem, percebendo que foi ignorado pelos policiais, continuou seu caminho, discretamente, mas acelerando a cada passo.

Quando um dos policias percebeu sua ausência, o jovem já estava a uma certa distância. Um dos policiais decidiu correr atrás e o jovem passou a correr como se não houvesse o amanhã. Mudou o trajeto e enfiou-se entre vielas e escadarias e ficou por uns minutos em uma casa abandonada até não ouvir mais nada.

Por fim, foi em silencio, evitando qualquer barulho, debaixo de chuva, até a casa da namorada. Venceu a quarentena, venceu a imposição do recolhimento obrigatório e deslocou-se ao destino- Missão cumprida. Foi recebido aos beijos por ela, que falou.

– Acabou o vinho. Tens como ir na tasca comprar mais?


Publicado originalmente no blog Crônicas da Quarentena

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