A porta da varanda escancarada e a leve brisa que entrava pelo quarto junto de insetos ainda não catalogados. As temperaturas subiram, o dia clamava pela presença de todos às ruas, o vírus não deixava. Se o desejo era caminhar livremente, com trilha sonora aos ouvidos e passos que me levariam a lugar algum, viajar dentro da mente tornou-se o caminho.
Observo o horizonte, a serra e estou no interior do Brasil, acordando para mais um dia de trabalho normal. Notebook na pasta, calça jeans, camisa social, dirijo-me ao terminal de ônibus rumo ao trabalho. A viagem será longa e vai mudar toda a minha vida.
Estou distraído, muito distraído. Faço maldades com minha retina lendo dentro do ônibus. Tão concentrado nas páginas, ignoro tudo que há no meu entorno. Os outros trabalhadores, estudantes, o pedinte, até mesmo aquela garota que ficava me olhando, como se quisesse saber o que eu estava a ler.
Talvez eu seja a pior pessoa do mundo. Sempre brinquei com a minha grosseria, uma desculpa estúpida para uma timidez envergonhada. Mas às vezes eu só queria ter um pouco mais de atenção, mesmo. O observador que, às vezes, esquece de observar. Era só levantar a cabeça.
Saio do ônibus e caminho pelas ruas centrais. Como em uma foto com fundo desfocado, não enxergo nada do que tem a minha volta. Não há rostos, só vultos. Como se fosse um robô (ou seria um zumbi), eu apenas caminho.
Entro no segundo ônibus. A viagem é longa, o dia parece ser como todo os outros. o frio ameaça dar as caras, mas a temperatura é boa. Troco o sofrimento da retina pelo tímpano. A trilha sonora para nossas vidas é um folk genuinamente blumenauense. Eu apago, transcendo para outro plano. Desligo meu corpo da terra enquanto a trilha conduz-me não ao trabalho, mas para aquilo que mudaria minha vida.
Antes de descer, observo o celular. Há uma mensagem, da Universidade da Beira Interior, com o resultado da candidatura ao mestrado. Sabe aquilo que você tenta sem a mínima esperança de conseguir? Jamais poderia imaginar que fosse tão fácil, mas a carta para virar tudo de cabeça para baixo havia chego.
Sai do ônibus atônito, sem saber o que fazer. Eu não me preparei para isso. Na verdade, as coisas boas a gente gosta quando acontecem sem preparar. Comemorava? Pulava de alegria? FIcava nervoso porque não sabia se conseguiria viajar? Minha mente continuou em outro mundo, pois não sabia o que fazer com a realidade.
Eis que a paisagem volta a ser da Serra. São quatro anos desde aquele dia, que parecia ser como qualquer outro. Tenho a consciência de um mundo inteiro que deixei para trás: emprego, projetos, relacionamentos, uma paixão tóxica pela minha terra.
Deixei para trás oportunidades, possibilidades, situações. Aquela pergunta que não foi feita, aquele texto que não foi escrito, aquela visita que não ocorreu, o fechar do livro que deveria ocorrer no momento certo.
A quarentena muda a nossa rotina. Vivemos em estados alterados da mente, com euforia, reflexão e apreensão. Os últimos dias foram de euforia e apreensão, precisava de um dia reflexivo e uma viagem ao passado como hoje…
…e precisava escrever isso.