Crônicas

Guia turístico

A Estação Ferroviária de Praga está lotada. É tanta gente que eu duvido que uma máscara vá me proteger. Aliás, então a hipocrisia. Dizem que é para você usar máscara sempre, mas se descumprir a regra, tudo bem. Eu vi um casalzinho de boas dentro de um trem. Eles nem disfarçavam, nem com a famosa máscara à brasileira (com o nariz de fora).

Mas voltamos à Ferroviária de Praga. Não há uma única cadeira livre, muita gente em pé, outros correndo com malas, aquele cenário clássico também encontrado em rodoviárias e aeroportos. Eu estou sentado, ouvindo meu podcast, fingindo que não está ficando muito quente, que logo eu vou pegar um trem de sete horas até Budapeste. Estou alheio a tudo que acontece a minha volta, até escutar uma voz, claramente direcionada a mim:

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit, sed do eiusmod tempor incididunt ut labore et dolore magna aliqua, disse uma senhora, com uma mala na mão.

Sim, caro leitor. Como não entendo nada de tcheco, os trechos neste idioma serão substituídos por Lorem Ipsum.

I’m sorry, I can’t understand, respondi

Sunt in culpa qui officia deserunt mollit anim id est laborum. Where I buy the tickets?

Where do you go? The Regio Jet…

– Where I buy the tickets?

I don’t know. I’m a fucking tourist. I dont wanna help you. I just want to go to the fucking Budapest in a fucking train.

Mentira. Nem fui mal educado. Apenas disse a senhora que não era da cidade, que não sabia nada. Mas quando a senhora foi embora eu fiquei me perguntando: eu tenho cara de tcheco? Antes que você pense, eu já respondo: não tenho. O povo daqui tem uns traços muito diferentes dos nossos.

Se eu não tenho cara de tcheco, por que diabos a senhora parou para me perguntar coisas numa ferroviária lotada? Tenho cara de guia turístico por acaso? Provavelmente sim, pois não é a primeira vez que isso acontece.

Blumenau, Jaraguá do Sul, Florianópolis, Itajaí, Covilhã…Nas cidades que morei ou trabalhei, sempre foi comum ser parado para tirar dúvidas de motoristas perdidos, turistas avoados, entre outras criaturas fora do ecossistema local. Mas quando isso ocorre em lugares onde eu também sou turista, assusta.

Em 2020 AP (Antes da Pandemia), eu estive em Colônia, Alemanha e fui parado por um chinês na ferroviária que queria saber onde era o banheiro. O inglês dele com sotaque era horrível e eu tenho uma dificuldade em ouvir em outro idioma quando alguém fala muito rápido (na verdade, em português também, mesmo falando muito rápido e sendo muitas vezes incompreensível também).

Ainda em 2020 AP, em Lisboa, um mendigo me parou para pedir dinheiro falando em inglês. Está andando pela cidade com uma mochila cheia nas costas, deve ser gringo, pensou ele. No caso de Lisboa, eu era sim gringo. Mas não um gringo brasileiro, ou seja, sem dinheiro. Devo ter algum tipo de imã para pessoas que precisam de ajuda nas ruas, seja em dinheiro, seja em informação.

Esta condição me levou a duas propostas. A primeira seria começar a cobrar pelas informações, o já tradicional UM EURO (quem convive comigo em Portugal, sabe). Se ganhasse um euro por vez que sou parado para pedir informações, teria dinheiro para uma boa viagem no fim do ano.

A outra possibilidade é o trote. Começar a passar informações erradas. Não para humilhar e sim dizer coisas sem sentido, inventar lugares que não existem com doses de absurdo. Mas aí lembro que muitos desses estão realmente perdidos, realmente precisando de ajuda e não fazendo perguntas bestas (como o chinês que queria saber onde era o banheiro com várias placas indicando com ícones).

Escrevo a versão original desta crônica em um local público em uma cidade onde estou turistando. Até agora, ninguém me parou para pedir informações. A edição final será escrita em casa, sem riscos de estranhos me tratando como guia turístico. Se for perguntado será sobre o que vamos comer no jantar.

(atualização do dia da publicação: ninguém me parou no Aeroporto de Budapeste. O que me assustou lá foi o fato de NINGUÉM usar máscara)

Deixe uma resposta