Confesso que comecei a escrever esta crônica após definir o título “a desgraça criativa”. Mas penso no assunto há uns dias, desde que os versos abaixo entraram na minha cabeça:
Ouro manchado de sangue
É o terror do continente
O passado deixaram mudo?
Ou surdo é o presente?
Tento, sem sucesso, tirar a música Veias Abertas do Planet Hemp da minha cabeça. A culpa é do Tiago Santineli, que colocou ela no começo do seu show de Stand Up. Os caras estavam há séculos sem lançar um álbum novo e lançaram com uma música maravilhosa, uma pegada Rage Against e uma letra que homenageia Eduardo Galeano.
Porém, meu caro leitor, esta crônica não é uma resenha do álbum Jardineiros. Mas é sobre música. É sobre a arte que surge em meio a tragédia. Sobre a desgraça criativa. Primeiramente, preciso explicar que sou um noventista em termos musicais. Não falo do É o Tchan, nem do EuroDance. Foi o Grunge de Seattle, o hardcore do Offspring e o movimento rock BR de 94 que me fizeram um discípulo desta década.
O Grunge é um rock arranhado, stressado, depressivo. Seus principais nomes morreram de suicídio ou overdose. Dizem que há uma vigília em torno do Eddie Vedder, o vocalista do Pearl Jam. Mas ele é todo certinho, não precisa disso. Em síntese, a receita de sucesso do grunge foi a desgraça da vida do jovem do começo dos anos 90.
Rock no governo Bolsonaro
Voltamos a 2022, quando o Planet Hemp voltou a lançar um álbum. Muito elogiado pela crítica, Jardineiros é feito a base de ódio. Ódio político e social, neste caso. Os integrantes confessaram: eles voltaram a fazer músicas novas por causa do momento que vivia o Brasil. Momento, leia-se, Bolsonaro.
E não foi o único álbum de rock do governo Bolsonaro com qualidade, talhado no ódio ao hoje inelegível. A banda capixaba Dead Fish nasceu no hardcore, flertou com o emo e voltou ao HC raivoso com o álbum Ponto Cego, lançado em 2019. Portanto, a desgraça do governo Bolsonaro foi boa para essas bandas. Jimmy, ex-Matanza, fez um álbum com os Rats muito mais sonoro, com letras mais interessantes na mesma época.
Eis que o meu irmão, ao ouvir Veias Abertas, simplificou:
O Bolsonarismo fez bem para o rock
O que o Grunge e o rock brasileiro têm em comum? Precisam do ódio, da desgraça para funcionar. Quando o Brasil viveu um período de estabilidade e crescimento econômico, nos governos Lula I e II, o rock do momento era o Emo, que se alimenta de um fake ódio. Os emos eram os rebeldes sem causa, depressivos por estética.
Alguém pode argumentar que isso é natural do rock, uma música que surgiu na rebeldia. Porém, vou além. A arte em geral adora uma desgraça. A maior obra de Pablo Picasso, Guernica, é o retrato da guerra civil espanhola. García Márquez era movido a desgraça da solidão. Vargas Llosa movido a ódio contra as ditaduras (até ficar velho e se simpatizar por elas). A vida de Kafka era uma desgraça só. E o que dizer do Mal do Século na poesia brasileira?
A desgraça criativa afeta todos nós
Não apenas os grandes artistas nutrem da desgraça criativa. Há uns anos, eu tinha um blog coletivo de literatura chamado Botequim Literário. Um dos autores ficou um tempo sem escrever. Questionado, ele disse que estava em um momento bom na vida e isso havia tirado a inspiração para escrever. Portanto, ele só voltaria a escrever quando estivesse na merda de novo. Ora, meus caros leitores, deveria eu torcer pela tragédia do amigo em função do blog?
Devemos também olhar para o público. Afinal, histórias bonitinhas são interessantes? É possível fazer arte sem um pouquinho de ódio? Ademais, as tragédias de Shakespeare foram muito mais famosas que as comédias.
Por fim, não podemos torcer contra o Brasil para termos um rock de qualidade. É melhor um governo estável e ficarmos ouvindo as músicas do passado que o contrário. Grandes obras não justificam um Bolsonaro.