Contos

O homem que não parava de escrever

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Carlos odiava a língua portuguesa. Odiava tanto que gostaria de nascer depois de 2000, para ser alfabetizado com a nova ortografia, mais fácil de aprender. O estudante secundarista odiava escrever, nunca tinha ideias e sempre redigia muito mal. Raramente conseguia terminar um texto, sempre com erros de concordância e frases sem sentido.

O vestibular estava próximo. E para se tornar um acadêmico de Sistemas de Informação, Carlos teria que escrever uma boa redação, que era eliminatória na prova. E isto deixava o jovem preocupado, já que seu desempenho no colégio nunca superou a nota 3,5.
A dois dias da prova, a professora de português do colégio teve uma ideia para ajudar o seu aluno. Sugeriu a ele um desafio: escrever 50 redações sobre temas variados em um dia. A educadora iria fiscalizar junto com a família.

Os temas variados abordavam qualquer assunto que poderia ser questionado num vestibular. Com isso, Carlos já teria escrito a redação da prova, que seria corrigido pela professora. No grande dia, bastava ele lembrar o que escreveu (sua memória era boa). O texto não ficaria igual, mas sairia até o final e com um português melhor do que se tivesse redigido na hora.

O sábado foi inteiro de redações. Carlos escreveu as 50 propostas da professora, que revisou uma por uma. Depois, ele releu todos os textos duas vezes. O vestibulando estava decidido a sua grande inimiga não o derrotaria no exame.

No vestibular, Carlos surpreendeu a todos. O exercício bizarro do dia anterior deu um resultado muito além do esperado. Ele não apenas conseguiu escrever um texto adequado para a prova (em um português razoável), como produziu outros 10 textos sobre o mesmo tema. Acabou sendo o último a deixar a sala de aula.

A alegria da professora de português, que conseguira fazer o aluno gostar de escrever, logo se transformou em preocupação. Carlos deixou a universidade onde fez a prova e, no quiosque do colégio, instalado em frente ao local, pegou um caderno e escreveu outros 20 artigos. Os colegas de classe não conseguiam distraí-lo. Sério, concentrado, sem dizer uma palavra, ele não parava de escrever.

Preocupada, a professora resolveu chamar os pais, para levar o garoto para casa. A mãe, que acompanhou os exercícios de sábado, chegou em 20 minutos e a primeira coisa que fez foi tirar a caneta do filho.

– Você conseguiu, Carlos. Agora não precisa mais escrever tanto – disse.

Ele ignorou o comentário da mãe, arrancou a caneta da mão dela, pegou o seu caderno e saiu correndo. Os colegas de classe assistiram a cena assustados e resolveram ajuda a família, indo atrás do perturbado vestibulando.

Carlos entrou em um ônibus e não foi alcançado pelos amigos. Sentado, voltou a escrever, agora contos de ficção. Escrevia ininterruptamente, um texto atrás do outro….e nunca mais parou.

Até o ponto final da linha, em um bairro da periferia da cidade, ele escreveu mais 10 textos, agora contos ficcionais.

O motorista obrigou Carlos a sair do ônibus, após o ponto final. Andando pelas ruas da periferia, ele procurava uma papelaria aberta, para comprar um novo caderno. Não encontrou o comércio, mas avistou um garoto aparentando 10 anos com uma agenda na mão.

Carlos agrediu a criança, roubou a agenda e saiu correndo para dentro de um beco. Isolado, em um lugar fétido, o vestibulando voltou a produzir. Conseguiu escrever 30 dias da agenda até ser descoberto por moradores da região. A criança havia denunciado o roubo.

Dois irmãos mais velhos do garoto roubado exigiram que Carlos devolvesse a agenda. Ele se recusou e saiu no braço com os jovens da periferia. A confusão terminou quando um carro da polícia passou em frente ao beco. Os três envolvidos foram detidos e levados para delegacia. A mãe voltou a ver o filho na junto aos policiais. Encontrou Carlos tentando escrever na parede da cela onde estava detido.

– Delegado, meu filho ficou louco. Ele não para de escrever – disse a mãe.

– Aqui nós prendemos bandido, minha senhora. Se o teu filho está lelé da cuca, procure um médico. Vou soltar esse biruta já – respondeu o delegado.

Quando a professora chegava para ajudar a mãe, Carlos, solto pelo delegado, voltou a incomodar. Agrediu a autoridade policial e roubou uma resma com 500 folhas de papel. Ele tentou fugir, mas foi detido por outros agentes.

A agressão ao delegado custou caro para o então vestibulando. Carlos foi acusado de bater no policial por motivo de drogas e acabou sendo condenado a 10 anos de prisão. A vida do jovem que queria estudar sistemas de informação estava arruinada. A professora de português foi acusada pela sociedade de enlouquecer o ex-aluno e foi demitida da escola. Nunca mais trabalhou na área.

Dentro da penitenciária, Carlos voltou a ser sociável. Fez amizades com as lideranças do tráfico e esteve envolvido como um dos mentores em várias revoltas no local. Para a polícia, não restava dúvidas que ele tinha se transformado num traficante.

Mas o tráfico em questão não era de drogas. Junto com seus colegas do crime, Carlos conseguia fazer com que materiais entrassem ilegalmente na penitenciária. Celulares, revólveres, drogas, canetas e resmas de papéis. Carlos continuava escrevendo.

Sete anos após ser preso, Carlos foi morto pela polícia, após uma revolta no presídio. A notícia de que um jovem que não gostava de escrever foi morto depois ser preso por escrever demais foi manchete nos principais jornais do país.

A imprensa tratou Carlos como uma vítima jamais compreendida pela sociedade. Os textos que escreveu enquanto estava preso foram revelados e entregues para a mãe, que revendeu os direitos para uma editora.

Foram publicadas cinco obras póstumas de Carlos. Todas Best Sellers. Seus romances falam em sonhos interrompidos, imposições da sociedade e tortura. Ele foi considerado pela crítica como um dos maiores escritores brasileiros de sua época.

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